A capacidade de uma narrativa literária de se transformar em mito, seja a obra ou personagem é uma das mais importantes propriedades de uma boa literatura. Veja Capitu, Policarpo Quaresma, Gabriela (a Cravo e Canela), Romeu e Julieta, Ulisses (da Odisseia): são personagens, dentre milhares, que extrapolaram o lugar comum da narrativa e se transformaram em mito. Sadres, o personagem principal do romance Sadres, o sábio, o louco e o poeta, do escritor e poeta Paulo Esdras, nasceu para ser mito ─ pensei ainda quando eu estava na leitura das primeiras páginas do livro.
Entrementes, veio-me à cachola a suspeita de que Sadres não era um ente da ficção, mas alguém da realidade ao qual Esdras estava apenas biografando. Minha suspeita aumentou porque o livro é narrado em primeira pessoa por um jornalista que desejava fazer uma matéria sobre Sadres.
Será Paulo Esdras um jornalista desses adeptos do gostoso estilo gonzo de escrever? De repente este livro é apenas uma longa reportagem gonzo! Uma matéria biográfica gonzo de uma personalidade pitoresca moradora de Brumado. Há no romance uma verossimilhança que nos faz perceber o encadeamento da verdade, o que elevou a minha suspeita de que o protagonista era de carne e osso. O que é a verossimilhança senão a propriedade fundamental em uma narrativa ─ por mais fantasiosa que ela seja? A segunda qualidade da boa obra literária é a capacidade da narrativa em si ou do personagem principal se transformar em mito. E Sadres tem a aptidão de ser mito!
A dúvida continua à medida que adentro a leitura. Esdras descreve com naturalidade os locais onde a personagem principal passa, seja na cidade, seja na zona rural garantindo a lógica interna da narrativa. Outro vetor leva à verossimilhança: os poemas incrustados em alguns capítulos dão aquele tom de que Sadres é real já que o narrador compilou poemas atribuídos ao protagonista como força de exemplo da grandeza dele. Sadres existiu, existe? Uma boa obra literária é aquela que provoca no leitor a pergunta ingênua e fundamental: será verdade? O escritor baseou-se na realidade para construir a obra?
Quantas vezes, nas minhas releituras, por exemplo, no conto Uma esperança, de Clarice Lispector, perguntei aos meus botões se a história foi uma narrativa pura da vida real, tal qual em A menor mulher do mundo. G.H. ou Macabéa são frutos da realidade dos quais Clarice transportou para a literatura? As perguntas são índices de que a narrativa literária é impregnada de verossimilhança, portanto, boa.
Em meio às minhas perguntas, vou sentindo a obra: poemas incrustados na narrativa, outras narrativas internas que rememoram o Inferno de Dante, Patativa do Assaré, Leandro Gomes ── o primeiro cordelista brasileiro… a sapiência de Sadres. Sadres é um sábio, conforme o título da obra sugere. Nas falas e nas ações do protagonista encontro lições de vida, análises da sociedade atual, respeito aos animais, quebra de padrões. Vou apreendendo um pouco da filosofia desse homem que, para mim, é um solitário e sensato hippie intelectual vivendo nas entranhas da Caatinga baiana. E nessa filosofia paro para refletir.
Quando fui para os finalmentes do romance, pintaram outras deliciosas dúvidas: seria Sadres um anagrama do sobrenome do escritor? Afinal de Esdras para Sadres há um anagrama perfeito! Então Sadres seria o álter ego de Paulo Esdras? Não importa as respostas, o que importa é a fruição, as provocações que este livro me excita, as imagens de Brumado, as imagens da região da Serra das Éguas na caatinga brumadense que vou formando em minha mente, conforme a narração me sugere.
Cheguei hoje ao final do romance com minhas deleitáveis minhocas divagando e revirando o jardim da minha mente, graças a esta leitura. O romance mexeu comigo: é uma literatura ativa. Esdras cumpriu ─ em linguagem leve e amistosa ─ um romance que provoca o pensamento. E aí está a terceira qualidade dessa narrativa: fazer pensar!
Hoje é o lançamento da segunda edição de Sadres, o sábio, o louco e o poeta. Se eu pudesse ir ao lançamento que ocorrerá na FLIGÊ ─ Feira Literária de Mucugê ─ mesmo sem a permissão do escritor, eu diria ao público presente no espaço da apresentação, venda e autógrafo:
─ Esse romance nos provoca reflexões, deleite, mexe com a nossa filosofia e nossa teoria literária.
Quem gosta de boa literatura partirá para o livro de Paulo Esdras feito tico-tico no fubá.
Valde Ribeiro