É tarde no Largo do Pelourinho. E o calor vem do céu, vem das pessoas cheias de alegria e carnaval em plena Quarta-Feira de Cinzas. Do palco, a banda manda um samba-reggae atrevido. Centenas e centenas de humanos dançam, sorriem, se abraçam, beijam, conversam. O colorido da praça igual ao da cerca da Igreja do Senhor do Bonfim: cheia de fitinhas de devoção em dia de festa. E eis que na profusão de pessoas, no pequeno espaço de locomoção da calçada, Rosa Luxemburgo e Karl Marx se encontram. Ela descia a ladeira; ele, subia. Então param em meio ao vai e vem das pessoas.
— Karl Maaaaarx! Boa taaaarde!
— Boa taaaaarde, Roooooosaaaaaa!
— Como vai de carnaval. Marx? — a voz feminina imitando uma mulher empoderada.
— Curtindo adoidado! E você, Rosa Luxemburgo? — Uma voz masculina imitando um idoso.
— Também!
A face de Rosa Luxemburgo fremia, tal qual a de Marx. Mas eis que as duas faces ficam praticamente estáticas por uns quarenta segundos. Marx olhando sério para Rosa, Rosa olhando sisuda para Marx. São duas estampas, duas estampas em camisetas vermelhas que se encontram. Dentro da camiseta com Rosa Luxemburgo há uma moça preta com lindos dreads escorrendo até o pescoço. Dentro da camisa com Marx há um rapaz pardo de cabelos longos. Em multidão tão densa como aquela, depois de quatro dias de folia e magia, como poderiam duas estampas tão ideológicas se encontrarem? Dois filósofos, dois comunistas, dois libertários, uma ideologia na confluência do destino e no meio da multidão! Dentro de cada camisa, jovens intelectuais, jovens da Esquerda!
O que dizer em um momento como esse? Como expressar a coisa gostosa que brotava em ambos? O rapaz e a moça passam longo tempo contemplando as estampas das camisetas e sem dar conta de se olharem. Agora os olhares da moça e do rapaz se encontram em silêncio, surpresa e sorriso. Marx e Rosa também se olham. Olhar sisudo. Olhar estático das estampas. De repente, num movimento suave, as faces de Rosa e Marx se tocam, se colam numa sincronia perfeita. Marx e Rosa Luxemburgo em beijo longo. As faces de Marx e Rosa coladas. E, como o corpo feminino dentro da camisa começa a se contorcer num gingado baiano, de igual modo o corpo masculino dentro da camisa, o beijo de Rosa e Marx tornam-se mais dinâmico, mais colado. Duas estampas unidas. Dentro das camisetas dois corpos se movimentam na cadência do samba-reggae numa dança kundalínea e sincronizada . Celebram o encontro comunista, a vida carnavalizada. As estampas corpo a corpo coladas ainda se beijando,
Vald Ribeiro
Nota do escritor: em vez do ponto final no último período da crônica há uma vírgula. Não é erro gramatical ou falha de digitação: é uma alusão à continuidade da história. Portanto, licença poética.
Obra de ficção
Este texto é fruto da imaginação do autor, não tendo qualquer relação com pessoas, lugares, acontecimentos ou situações reais. Qualquer semelhança é pura coincidência.
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