Olhei com pesar a notícia em uma revista online de que a mulher sem parente morreu anteontem pela manhã. Ela estava a 24 anos em coma. A mulher foi atropelada por um ônibus na capital do Espírito Santo. Foi internada no Hospital da Polícia Militar, que durante esses 24 anos prestou toda a dignidade e assistência médica que merecia um ser humano em coma na UTI. Clarinha era o nome dela. Deram-lhe esse nome no hospital porque na época do acidente ela não portava nenhum documento.
A notícia mostrava o quanto a assistência social do hospital tentou localizar os familiares. Tentaram tudo que fosse possível e impossível para encontrar parentes da moça: papiloscopistas da Força Nacional de Segurança Pública em conjunto com o Ministério Público do Espírito Santo usaram meios complexos de busca de digitais. Usou-se técnicas avançadas de comparação facial de pessoas desaparecidas. Nas investigações chegaram a uma menina desaparecida em 1976 em Guarapari, mas os materiais genéticos de Clarinha eram incompatíveis com os dos pais da menina desaparecida; então não tinha ligação com a mulher sem documentos. Tanta busca em vão.
Fechei o site da revista. Saí de casa como faço em quase todas as manhãs de sábado para absorver a manhã e me preparar para os pequenos, médios e grandes prazeres do final de semana. Como, em plena manhã de sábado, momento em que a alegria já deveria florescer em mim feito os lírios do vale, meu cérebro se ocupa tristemente em reverberar a notícia da mulher sem parente?
Clarinha era mãe, disseram os médicos que cuidava dela. Pelo menos a cicatriz no ventre dava a ideia de que tivera um parto cesárea. Onde andará agora o filho ou filha de Clarinha? Sabia do sumiço da mãe e a procurara, ainda procura?
O fato que a mulher sem parente que “descansou”, conforme afirma uma nota do hospital, me impactou. Uma mulher sem parente nem derente, sem lenço e sem documento. Como no mundo pode haver um humano sem nenhum rastro de parentes, sem similaridade de DNA com outras pessoas, sem que ninguém a procurasse?
Será que alguém da família não percebeu o sumiço dela? Teria brigado com a pessoa que a perseguia quando ela foi atropelada? Seria um ladrão, marido, companheiro que a perseguia? Será que a família de Clarinha, percebendo o sumiço, registrou na delegacia o desaparecimento e… quem sabe acharam um cadáver de mulher em decomposição e deram como sendo o do corpo de Clarinha?
Clarinha feito Macabéia — de Clarice Lispector — atropelada lá no Rio de Janeiro! Macabéia sem parentes e amigos na cidade maravilhosa. Macabéia estirada no chão… Clarinha me lembra a protagonista atropelada de a Hora da Estrela. Mas Clarinha não morreu na hora; levou 24 anos para morrer.
Fiquei pensando essas coisas enquanto eu andava pelas ruas do Centro. Eu andava cabisbaixo e vi uma margaridinha branca sem caule jogada no chão já murcha e pisoteada. Como essa flor veio parar aqui? Como se perdeu? Caiu de um buquê? Se desprendeu do cabelo de alguma moça elegante que passou hoje por aqui? Parei um pouquinho como se eu tivesse em frente a um esquife. O esquife de Clarinha. A mulher sem parente reverberando em minha mente. Maldita hora que fui ler a notícia! A flor! Uma margarida tão clara e pura quanto Clarinha… Esta flor é Clarinha…
Vald Ribeiro
(Vald@palavras1.com.br)