A padaria que também vende pão para o espírito

Foto: Ismael Soares/SVM

O que é o pão de trigo senão o alimento do corpo? Talvez o alimento mais consumido no mundo. De manhã, o pão fortalece as nossas energias, nos prepara para a faina diária. E ele pode voltar à tona na nossa rotina no lanche das dez da manhã, ou da tarde. De noite, com certeza, o pão vai para nossa boca num ciclo interminável e inefável configurando-se como alimento básico do corpo.

Há em Fortaleza uma padaria que foi além da venda de pão para o corpo: vende também pão para o espírito: a Panificadora São Jorge. Fica no bairro de Farias Brito. Fiquei sabendo pelo jornal Diário do Nordeste.

Pelas fotos, vi que não é uma daquelas  padarias sofisticadas  que mais parecem loja de departamento e que tiram do nosso olfato o cheiro gostoso do pão vindo dos fornos da padaria. As padarias chiques nos tiram também o direito da conversa da fila do balcão ou do caixa porque geralmente ficam em bairros ditos nobres ou na região central da cidade, cujos compradores, pela manhã, trazem nas faces sisudas ou inertes a abespinhada expectativa da ida para o trabalho, e se for à noitinha, o natural cansaço da volta. Muitos estão com caras fechadas envoltos em seus problemas existenciais, distribuição de lucros; problemas na empresa ou na repartição do Estado. Não riem, não falam de política, nem do placar do jogo da noite anterior, nem da novela, nem tem fofoca da vizinhança para contar. Se há jovens na fila do caixa, estão com celulares na mão e, com incrível senso de direção — já que estão com olho no celular —, seguem em direção ao caixa, tranquilos sem esbarrar em ninguém ou esquecer-se de avançar na fila.

Padaria pequena e de periferia é um ambiente de aconchego, simpatia e amor. Há conversas sobre assuntos da noite anterior, sobre o time, sobre a política, ou até sobre um acontecimento violento ocorrido na cidade. Batem-se resenhas no balcão ou na fila do caixa. Saúda-se os funcionários do balcão ou do caixa, fazem-se pilhérias e vão fazendo da fila, não um ambiente enfadonho, mas agradável. E há aquelas padarias periféricas que nem caixa de pagamento tem: paga-se para o próprio balconista, sem que isso seja um infortúnio, mas uma rotina afável…

Foto: Ismael Soares/SVM

A cada parágrafo da bela matéria do Diário do Nordeste, eu paro não só para olhar as fotos. Vou imaginando o quanto eu ficaria contente se frequentasse a Panificadora São Jorge, porque eu estaria unindo no mesmo espaço o útil ao meu agradável. Na segunda foto, vi que não há livros novos à venda ali. Há uma estante grudada na parede cheia de livros de segunda mão. Vi também uma cadeira servindo de estante para dezenas de livros. Há também outro móvel com muitos e muitos livros. Na matéria, fiquei sabendo que os donos — dona Simone de Oliveira e Adilson Carlos —, um casal unido também pelo amor aos livros.  Já tiveram um sebo. Depois da pandemia,  devido às crises econômicas  causadas pelo tempo de terror pandêmico, o movimento no sebo caiu; eles tiveram que se reorganizar a renda familiar e montaram a padaria. O casal sempre foi amante de livros. Se conheceram em São Paulo, ela trabalhando no Play Center, cuidando de golfinhos e baleias-orca. Na capital paulista conheceu Adilson, tal qual Simone, amante da leitura.  Mudaram-se para Fortaleza e lá montaram um sebo. Agora, uniu sebo e padaria no mesmo espaço. E aí está o gostoso do estabelecimento: pão para o corpo no balcão; pão para o espírito nas estantes.   Por falar em “pão”, lembrei-me de Monteiro Lobato, que na voz de Emília, quando ela desejava reformar a natureza, sentenciou: “livro é pão para o espírito” .

Tive uma gostosa inveja dos moradores do Bairro Farias Brito em Fortaleza. Na verdade, tenho inveja dos fortalezenses que têm o doce privilégio de ir à Panificadora São Jorge para comprar no mesmo espaço pão para o corpo e para o espírito. Pensei e desejei com fé pujante que esse magnífico empreendimento se espalhe pelo Brasil. E que seja como  essa padaria: livros usados nas estantes, pois há a graça transcendente que só o cheiro de livro de sebos tem; haverá aquela gostosa tentação de comprar ao menos dois livros toda vez que se entra  num sebo. Fiquei imaginando como será gostoso a união dos aromas naturais da padaria com o dos livros… pura delícia!

Se eu morasse perto dessa padaria, eu ficaria encantado, perdido na estante, nos espaços cheios de livro farejando as novidades que só os sebos possuem. Eu iria sempre com um dinheiro extra para comprar os dois tipos de pães. 

Vald Ribeiro

Esta crônica foi inspirada na matéria Padaria de bairro em Fortaleza divide vitrine de pães com estante de livros: ‘Cultura acima de tudo’, publicada no site do Jornal Diário do Nordeste em 15 de julho de 2024 e escrita por Diego Barbosa. A matéria completa pode ser encontrada aqui:

 

 

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2 comentário

Rute Ferreira 17 de Agosto de 2024 - 9:33 pm
Nossa, que delícia! Morei em Fortaleza mas não tive a oportunidade de conhecer a padaria. Adorei o texto, Vald!
Palavras! 1 de Setembro de 2024 - 8:02 pm
Muito obrigado, Rute! Padaria maravilhosa, Rute. Nos sentiríamos no paraíso lá. Pena que você não teve a oportunidade de conhecer esse magnifico espaço.
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