O pornográfico Machado de Assis

Gravura gerada por IA (Google Gemini)

Vald Ribeiro

A filha de 16 anos estava deitada na rede que ficava na varanda. O pai, da sala, observava carrancudo a imersão da filha na leitura de um livro. Que livro era aquele que deixava a filha tão hipnotizada? Poderia ser um livro indicado pela escola! E se fosse um livro desses impostos por professores comunistas? Quem sabe um livro impróprio para pessoas terrivelmente cristãs e de extrema-direita?

Feito um gato à caça de passarinho, ele se aproximou por trás da rede em que a filha estava. Ela, concentrada, nem percebeu que o pai lia o que estava escrito no livro. Não demorou muito para que ele lesse:

como ninguém tachou de má a boceta de Pandora, por lhe ter ficado a esperança no fundo; em alguma parte há de ela ficar…

O coração do sisudo pai disparou, a pressão arterial foi para as alturas. Não! Não era possível que a filha estivesse lendo um livro de putaria! Aproximou-se da adolescente e deu um tapa tão violento no livro que esse vou da mão da menina e caiu bem distante. E ele, com toda energia de pai terrivelmente cristão e conservador de extrema-direita:

— Que sem vergonhice é essa? Queeeee seeeeem veerrrgoooooonhiiiiiice é essaa?

— Pai! O que o senhor fez? Derrubou o livro! É da escola! Estou lendo porque tem avalia…

— Tinha que ser da escola mesmo!  Aquele bando de comunistas e depravados não tem vergonha de passar um livro cheio de putaria como esse não? Vou amaaaaanhããããã na escooooola e vou perguntar a professora e a diretora que blasfêmia é esta de passar um livro pornográfico para os estudantes adolescentes.

— Mas pai, não é um livro pornô não.

— Não é? E aquele palavrão que li no livro?

— Pai. Não é palavrão não! Significa uma caixinha, uma…

— Não me venha com explicações absurdas não, Rebeca! Esses povos da escola está fazendo a tua cabeça para ser igual a um deles. Deus que me livre.

Chamou a esposa. Aos berros, ele contou a situação. E como o palavrão era tão   indecente, aproximou-se dela  e cochichou no ouvido a palavra que julgara indecorosa.  

E a mãe, com as mãos na cintura:  

— Não tem cabimento não, gente. Será que essas professora não tem vergonha na cara não? Que falta de pudor, meu Deus!

Ele:

— Tudo um bando de comunista e imorais! Temos que falar com nosso deputado. Com nossa vereadora também. A gente não pode deixar indecências dessas nas escolas. Se nosso presidente tivesse sido reeleito não tava mais acontecendo coisas desses tipo nas escola.

E a filha:

— Pai! Mãe! Não tem nada de pornografia no livro não! É de Machado de Assis. Ele sempre foi sério e a… a…. palavra que pai leu não é por…

— Não me engane não, Rebeca! Nem engane sua mãe. Se tem aquele palavrão que eu vi assim que bati o olho no livro, imagina o tanto de outros palavrãos o livro deve ter.

E a mãe:

— Amanhã mesmo eu vou na escola saber sobre essa…

— Não, Lindinalva. Eu mesmo vou. Tu é frouxa nestas horas. Tem que jogar duro com a diretora e as professoras. E você não vai saber jogar duro.

***

Na escola, o pai chegou bufando pelos cotovelos. A filha, rosto vermelho, olhar triste, ao lado dele.  E ele, assim que viu a diretora:

— Que história é essa de passar livros pornográfico para os alunos?

E ela, gentil, escondendo o medo do senhor que estava  visivelmente transtornado pela raiva:

— Bom dia, senhor! Nós não indicamos livros pornográficos para nossos alunos não. Tenho certeza disso. Até porque…

— Pois eu tenho certeza de que vocês estão passando livro de pornografia sim. Eu vi com meus próprios olhos. Um tal de Dom Casmurro, o livro.  E eu li lá, já de cara a palavra… me desculpa, mas eu… não tenho nem coragem de falar o paaaalaaaaavrão que li.

— Senhor. Não há pornografia neste romance. Machado de Assis tem uma linguagem clássica  e rigorosamente dentro da norma culta. Não há palavrões neste livro.    Eu asseguro para o senhor.

E a filha:

— Professora, eu estou tentando explicar para meus pais desde ontem, mas eles não me…

—  Fica calada aí, Rebeca. Deixe de defender as professoras…

A professora titular de Literatura da turma da filha foi chamada para explicar o conteúdo do livro.   Apreensiva, tentou contar o enredo:

—  É uma história romântica. Um romance clássico de uma época em que…

— Romântica uma ova. Um romance de putaria. Assim que li já vi logo um palavrão. E vou falar mesmo só para a senhora se lembrar. Se é que se esqueceu. Eu logo de cara li a palavra… boceta, com o perdão da má palavra.

E a professora:

— Senhor, não se trata de palavrão não! É que naquela época essa palavra que o senhor falou tinha outro significado. Significava…

— Não tente me enganar não, minha senhora. Eu li por esses olhos aqui, ó. Eu li! E se tem este palavrão deve ter muito mais e deve muito mais coisas indecorosa.

As duas professoras tentaram convencer o pai por uns cinco minutos. Tudo em vão. Então, para fechar a conversa, o conservador sentenciou.

— Pois minha filha não vai ler este livro não. E eu voooou aaagooooora procurar os deputado conservadores, a minha vereadora para demitir a senhora e a senhora — o dedo indicador apontando para cada uma das professoras. E censurar os livro desse tal de   Foice de Assis. Foice, não. Este livro do tal de Machado de Assis pornográfico tem que ser tirado da escola. E até vocês também tem que ser demitidas.

E a diretora, ainda gentil e escondendo o medo:

— Olha, senhor, confirmo mais uma vez que esse livro n…

— Não quero saber! Não quero nem sabeeeeer!

 Ele, dedo em riste, deu as costas para as duas professoras e se dirigiu lépido para a saída da escola.

A filha vermelha feito pimentão maduro permaneceu imóvel perto das professoras.

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