Café mais gostoso do mundo
A notícia no jornal era bem clara: “no café moído havia partículas semelhantes a vidro.” Fiquei imaginando essas partículas girando em meu estômago sem que os movimentos peristálticos e os sucos gástricos pudessem digerir esses vidros. As partículas se acumulando no intestino, uma ferida, uma doença grave se formando. Tive pena das pessoas que tomaram o café dessa marca condenada hoje pela Anvisa. Tive uma alegria, confesso que abjeta, de não ter tomado o café dessa marca, tão tradicional e agora corrupta. Se eu estivesse tomado, me sentiria depressivo, procuraria amanhã um médico para uma série de exames e até mesmo antes de ir à medicina, tomaria uma dose generosa de laxante. Procuraria a Justiça para processar a fábrica irresponsável? Mas pagar advogados, perder horas, dia de trabalho para lançar um processo do qual eu poderia perder, presumo que eu desistiria e viveria apenas o meu desgosto e meus medos por ter tomado o café corrompido.
Mas, como viver num mundo de falsificações? Como viver bem, mesmo que eu tenha tanto esforço para uma alimentação relativamente saldável sem a neurose de achar que todo meu esforço na busca da alimentação perfeita seja em vão?
Bom mesmo é quem ainda mora na roça. Não numa fazenda requintada que de tão grande não se sustenta e, com isso, importa muitos alimentos da cidade e, portanto, das indústrias, destas que muitas vezes são comandadas por industriais sacanas, mas uma rocinha típica daquelas da agricultura familiar, da qual os moradores têm horta regada com água natural, pomar com frutas viçosas e sem agrotóxicos. Uma fazendinha humilde e natural com airosa plantaçãozinha de café — sem uso de agrotóxico — da qual depois de colhido e seco ao sol, possa ser torrado no caco, uma espécie de grande prato de barro, que vai ao fogão de lenha ou de carvão para fazer a torra.
Minha vó usava um caco para torrar café. Quando ela deixou o campo, porque meu pai achou melhor que ela viesse para a zona urbana, ela impôs uma norma forte: o café seria ela quem torraria no caco, e ela mesma moeria num pilão de madeira. Ela não achava graça e sabor no café industrializado. Meu pai aceitou. E ela veio para a cidade com esses dois objetos. Mas como não foi possível torrar um café de qualidade, mesmo com o caco no fogão a gás, ela convenceu meu pai que ao menos comprasse uma espécie de fogareiro a carvão para que ela fizesse a torra do jeito que ela desejava. Assim foi feito e ela passou a ser feliz tomando o café gostoso que só uma torra em fogo natural em recipiente de barro pode dar. Eu era criança e adorava o café que ela fazia. Foi o café mais gostoso que já bebi na minha vida. Até hoje, apreciador de cafés gourmets das mais diversas marcas e regiões, eu ainda não encontrei um café tão gostoso como o que minha vó fazia. Tive o prazer de saborear o café maravilhoso da minha vó dos meus sete anos até os 13, quando ela, já com 94 anos não aguentou mais torrá-lo. A moagem no pilão, já era uma ação do meu pai, há alguns anos, mas a torrefação era dela. Meu pai chegou a comprar um moinho para moer o café de forma mais eficiente, mas ela não gostou do pó, e preferiu que fosse feito no pilão. Ela variava de torras. Às vezes, ela usava pequena quantidade de rapadura raspada junto com o café a ser torrado. Ora ela colocava uns dentinhos de cravo para temperar o café, ora não. Ora ela deixava o café mais escuro, ora de um marrom mais claro. E em cada torra diferente, um sabor surpreendente e inesquecível. Aqueles cafés que minha vó fazia na época — e continua sendo para mim — o melhor do mundo
Fiquei lembrando dessas coisas e pensei na possibilidade de morar numa roça, de viver com minha família mais natural e literalmente do que a terra produz. Mas meu dinheiro não dá para comprar uma fazendinha. Mas pensei em fazer um café natural e puro como o da minha vó. Sonhei comprar um fogareiro a carvão, ou no mínimo usar uma churrasqueira redonda que tenho, procurar um caco, ou algo parecido. A possibilidade de sentir os sabores dos cafés mais gostosos que só minha vó nos propiciava! A possiblidade de tomar um café puro! Mas lembrei que não se vende mais café seco na feira, nem no supermercado. Congelo meu desejo e volto à realidade: e se este café dito especial que tomei por dezenas de vezes hoje também estiver carregado de impurezas, como o que a Anvisa proibiu hoje?
Vald Ribeiro