Na modernidade, até a poesia é líquida

A poesia pode ser uma ferramenta no letramento infantil e encontra muitas possibilidades e caminhos ainda dentro do ambiente escolar – Ilustração: Freepik

Jornal da Usp

Por *Henrique Giacomin

A modernidade mudou a vida humana em vários aspectos, um deles é a relação do homem com os livros e a literatura. Segundo a pesquisa Retratos da Leitura, o Brasil hoje conta com mais não leitores do que leitores, tendo perdido cerca de 7 milhões desde a última edição da pesquisa realizada. Vale ressaltar, que ainda segundo a pesquisa, apenas 18% dos brasileiros leem literatura.

Num mundo dominado pelos romances, autoajuda e finanças, fica a dúvida sobre o espaço da poesia. Em levantamento feito no dia 7 de novembro pelo Jornal da USP, embora constem diversos títulos literários entre os 50 mais vendidos do site da Amazon— inclusive algumas peças de Shakespeare— , não há um livro explicitamente de poesia nessa lista.

Em meio ao caos da modernidade, quem explica um pouco melhor o espaço da poesia no mundo moderno é Fernando Paixão, escritor e professor do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

Segundo Paixão, a arte poética sempre acompanha o período em que ela existe, sendo definida como uma “arte de fazer”. “Cada vez que a gente sonha, que a gente fala um provérbio, de certa maneira, é um ato poético. No meu livro, que lancei agora há pouco, Descoberta da Poesia, eu tenho um capítulo justamente sobre a poética do tempo presente. Lá, eu digo que a nossa sociedade atual é o que um filósofo polonês diz, é uma modernidade líquida”, inicia o escritor.

Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Para Paixão, vivemos numa sociedade onde as instituições, paixões e crenças são provisórias, com uma vivência multifacetada, fragmentada, destituída de um eixo central e de transcendência. Segundo o professor, a constante mutação é algo bom, mas acaba criando uma certa angústia que gera sua própria potencialidade poética. “A poética de hoje é justamente uma poética que captura essa sensibilidade líquida na vivência de hoje, numa vivência fragmentada, sem crenças, muita ironia, pouca transcendência.”

Embora seja visível um processo de perda do lugar nobre da arte poética, Paixão destaca esse processo como algo bom. Segundo ele, esse é um movimento que vem desde as vanguardas do século passado: “Se a gente pensar no futurismo, nas vanguardas do início do século, justamente elas quiseram romper com essa nobreza da poesia. Mas fizeram tanta loucura também que depois perdeu um pouco o sentido. Depois da Segunda Guerra, as vanguardas experimentais, fazendo tudo misturado, não sei o quê, também não perdeu a sua razão de ser. Então, eu acho que a gente tem que entender sempre a coisa dentro de uma perspectiva histórica”.

A potencialidade das formas clássicas não é algo a ser desconsiderado. Para Paixão, é possível aprender sobre a arte poética por meio delas: “A forma clássica nos mostra a potencialidade, os recursos para fazer poesia. Se a gente acha que fazer poesia é apenas botar um sentimento no papel do jeito que a gente fala, a gente escreve, a gente está fazendo uma má poesia. Se a gente pegar um soneto mesmo, os sonetos de Camões têm imagens e coisas maravilhosas. Tem a ode, a elegia… Essas formas fixas, elas são um continente. Ela é um arcabouço, ela é uma forma. Mas o que você põe dentro dela tem que ser contemporâneo, tem que ser de uma visão contemporânea. É claro que não dá mais para ficar escrevendo soneto sobre uma amada, como antigamente, mas isso não quer dizer que tem que abandonar o soneto”.

O professor ainda destaca o rap e os slams como formas de poesia da atualidade. Ainda diz que, por vezes, eles se apropriam de recursos da tradição: “Você vai ver que existe uma poética que está aí, que tenta responder ao momento atual”, completa.

A poesia também pode ser uma ferramenta no letramento infantil e encontra muitas possibilidades e caminhos ainda dentro do ambiente escolar. Por meio dela, podem se criar mecanismos que ajudem na relação das crianças e dos adolescentes com o mundo, criando uma maior expressividade dos sentimentos. Segundo Paixão, “você pode começar a trabalhar poesia com quadras populares, com coisas do folclore, como você pode pegar um grego, um autor grego. Acho que a poesia é um grande continente e qualquer coisa de nós está sempre por dentro de um pedaço. A escola tem uma função, sobretudo, de fazer o aluno ter uma relação lúdica com a linguagem. A literatura ajuda muito nessa formação emocional do aluno, e a poesia está dentro disso, no sentido do uso da linguagem, de como a linguagem brinca consigo mesma”.

A poesia é um ato dentro da linguagem, e o homem é um animal que se define por dominar uma certa linguagem. A poesia é o trabalho da forma, um ato dentro da linguagem que busca romper, como um salto para fora disso. “Olha, a poesia começa desde que o homem começou praticamente a inventar a linguagem. E certamente vai acompanhar o ser humano até o final dos tempos, que pode ser que não esteja muito longe”, completa Paixão.

*Sob supervisão de Paulo Capuzzo e Cinderela Caldeira

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