Enchentes no Rio de Janeiro nas crônicas de Machado de Assis

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2 de fevereiro

Avocat, oh! passons au déluge! Antes que me digas isso, começo por ele. Não esperes ouvir de mim senão que foi e vai querendo ser o maior de todos os dilúvios. Sei que o espetáculo do presente tira a memória do passado, e mais dói uma alfinetada agora que um calo há um ano. Mas, em verdade, a água, depois de ter sido enorme, tornou-se constante, geral e aborrecida.

Mais depressa que as demandas, a chuva deitou abaixo muitas casas que estavam condenadas a isso pela engenharia; mas as demandas tinham por fim justamente demonstrar que as casas não podiam cair sem dilúvio, e a prova é que este as derruiu. Se deixou em pé as que não estavam condenadas (nem todas), não foi culpa minha nem tua, nem talvez dele, mas da construção. Ruas fizeram-se lagoas, como sabes, e o trânsito ficou interrompido em muitas delas; mas isto não é propriamente noticiário que haja de dizer e repetir o que leste nas folhas da semana, — não somente daqui, mas de outras cidades e vilas interiores. Tratando da nossa boa capital, acho que devemos atribuir o dilúvio, esta vez, antes ao amor que a cólera do céu. O céu também é sanitário. Uma grande lavagem pode mais que muitas discussões terapêuticas. Com a chuva que se seguiu ao dilúvio, vimos diminuir os casos da epidemia, enquanto que os simples debates nos jornais não salvaram ninguém da morte.

Podia citar dilúvios anteriores, — os dois, pelo menos, que tivemos nos últimos quinze anos, ambos os quais (se me não engano) mataram gente com as suas simples águas. Águas passadas. O primeiro desses durou uma noite quase inteira; o segundo começou a uma ou duas horas da tarde e acabou às sete. Era domingo, e creio que de Páscoa. Mas um e outro tiveram um predecessor medonho o de 1864, que antecedeu ou sucedeu, um mês certo, ao dilúvio da praça. O da praça arrastou consigo todas as casas bancárias, ficando só os prédios e os credores. Não perdi nada com um nem outro. Pude, sim, verificar como os poetas acertam quando comparam a multidão às águas. Vi muitas vezes as ruas perpendiculares ao mar cheias de água que desciam correndo. Uma dessas vezes foi justamente a do dilúvio de 1864; a sala da redação de um jornal, ora morto, estava alagada; desci pela escada, que era uma cachoeira, cheguei as portas de saída, todas fechadas, exceto a metade de uma, onde o guarda-livros, com o olho na rua, espreitava a ocasião de sair logo que as paredes da casa arreassem. Pois as águas que desciam por essas e outras ruas não eram mais nem menos que as multidões de gente que desceram por elas no dia do dilúvio bancário.

Pior que tudo, porém, se a tradição não mente, foram as águas do monte, assim chamadas por terem feito desabar parte do morro do Castelo. Sabes que essas águas caíram em 1811 e duraram sete dias deste mês de fevereiro. Parece que o nosso século, nascido com água, não quer morrer sem ela. Não menos parece que o morro do Castelo, cansado de esperar que o arrasem, segundo velhos planos, está resoluto a prosseguir e acabar a obra de 1811. Naquele ano chegaram a andar canoas pelas ruas; assim se comprou e vendeu, assim se fizeram visitas e salvamentos. Também é possível, como ainda viviam náiades, que assim as fossem buscar as fontes. Talvez até se pescassem amores.

Se remontares ainda uns sessenta anos, terás o dilúvio de 1756, que uniu a cidade ao mar e durou três longos dias de vinte e quatro horas. Mais que em 1811, as canoas serviram aos habitantes, e o perigo ensinou a estes a navegação. Uma das canoas trouxe da rua da Saúde (antiga Valongo) até a igreja do Rosário não menos de sete pessoas. Naturalmente não vieram a passeio, mas à reza, como toda a gente, que era então pouca e devota. Caíram casas dessa vez; a população refugiou-se ao pé dos altares. Afinal, como a cidade não tinha ainda contados os seus dias, fecharam-se as cataratas do céu; as águas baixaram e os pés voltaram a pisar este nosso chão amado.

Remontando ainda, poderíamos achar outros dilúvios pela aurora colonial e pela noite dos tamoios; mas, isto de chuva continuada não sei se é mais aborrecido vêla cair que ouvi-la contar. Shakespeare põe este trocadilho na boca de Laertes, quando sabe que a irmã morreu afogada no rio: “Já tens água de mais, pobre Ofélia; saberei reter as minhas lágrimas.” Retenhamos a tinta. A tinta de escrever faz as tristes chuvas do espírito, e em tais casos não há canoas que naveguem: é apanhar ou fugir. Por isso não falo do dilúvio universal, como era meu propósito. Queria lembrar que, por essa ocasião, uma família justa foi achada e poupada ao mal de todos. Verdade é que os seus descendentes saíram tão ruins, em grande parte, como os que morreram, e melhor seria que os próprios justos acabassem; mas, enfim, lá vai. Dar-se-á, porém, se estamos no começo de outro dilúvio universal, que não haja agora exceção de família nem se salve a memória dos nossos pecados?

Uma senhora, a quem propus esta questão por meias palavras, acudiu que não pode ser, que não tem medo e citou a folhinha de Ayer. Leu-me que teremos bom tempo e calor grande daqui a dias, e pouco depois novo transbordamento de rios, como agora está sucedendo, desde o das Caboclas até o Paraíba do Sul. O primeiro ainda não transborda, mas não tarda. Confessou-me que não crê nos remédios de Ayer, mas nos almanaques. Os almanaques são certos. Se eles dessem os números das sortes grandes e os nomes dos bichos vencedores seriam os primeiros almanaques do mundo. Entretanto, não duvida que um dia cheguem a tal perfeição. O mundo caminha para a saúde e para a riqueza universais, concluiu ela; assim se explicam os debates sobre medicina e economia e a fé crescente nos xaropes e seus derivados.

 Machado de Assis

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro em 2 de fevereiro de 1895.

Texto-fonte: Obra Completa de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, Vol. III, 1994.

28 de abril

Que dilúvio, Deus de Noé! Escrevo esta semana dentro de uma arca, esperando acabá-la, quando as águas todas houverem desaparecido. Caso fiquem, e não cessem de cair outras, concluí-la-ei aqui mesmo, e mandá-la-ei por um pombo-correio. A arca é um bond. Noé é um Noé deste século industrial; leva-nos pagando. Fala espanhol, que é com certeza a língua dos primeiros homens.

A princípio não tive medo; cuidei que eram dessas chuvas que passam logo. Quando, porém, os elementos se desencadearam deveras, e as ruas ficaram rios, as praças mares, então supus que realmente era o fim dos tempos. As árvores retorciam-se, os chapéus voavam, toalhas de água entravam pelas casas, outras desciam dos morros, cor de barro. Carro nem tílburi disponíveis. Algum veiculo particular que aparecia, ou levava o dono, ou esperava por ele. Bonds apenas, mas poucos, alagados, sem horário, quase sem cortinas. Entramos alguns em um, e o bond começou, não a andar, mas a boiar, boiou a noite inteira, ainda agora bóia.

Impossível foi dormir. Então conversamos, lemos, contamos histórias; as senhoras rezavam, as meninas riam. Um sujeito, querendo ligar o interesse municipal ao interesse humano, falou do recuo. A atenção foi geral e pronta. Vinte minutos depois já ninguém queria ouvir as opiniões consubstanciadas no discurso do orador, nem as deste, nem os textos legais e outros. A palavra amolação começou a roçar os lábios. Notei que a maioria presente era de proprietários, e naquela situação e hora era difícil achar matéria mais deleitosa de conversação; mas o nosso mal verdadeiro, local e perpetuo é a amolação. Há anos sem febre amarela, o cólera-morbo aparece às vezes, o crupe também e outras enfermidades, mas todas se vão, e alguns vamos com elas; a amolação não sai nem entra; aqui mora, aqui há de morrer. O sujeito do recuo teimou, outro desafiou-o, as senhoras pediram que não brigassem.

Machado de Assis

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro em 28 de abril de 1896.

Texto-fonte: Obra Completa de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, Vol. III, 1994.

1 de julho

 Quinta-feira de manhã fiz como Noé, abri a janela da arca e soltei um corvo. Mas o corvo não tornou, de onde inferi que as cataratas do céu e as fontes do abismo continuavam escancaradas. Então disse comigo: As águas hão de acabar algum dia. Tempo virá em que este dilúvio termine de uma vez para sempre, e a gente possa descer e palmear a Rua do Ouvidor e outros becos. Sim, nem sempre há de chover. Veremos ainda o céu azul como a alma da gente nova. O sol, deitando fora a carapuça, espalhará outra vez os grandes cabelos louros. Brotarão as ervas. As flores deitarão aromas capitosos.

Enquanto pensava, ia fechando a janela da arca e tornei depois aos animais que trouxera comigo, à imitação de Noé. Todos eles aguardavam notícias do fim. Quando souberam que não havia notícia nem fim, ficaram desconsolados.

— Mas que diabo vos importa um dia mais ou menos de chuva? perguntei-lhes, Vocês aqui estão comigo, dou-lhes tudo; além da minha conversação, viveis em paz, ainda os que sois inimigos, lobos e cordeiros, gatos e ratos. Que vos importa que chova ou não chova?

— Senhor meu, disse-me um espadarte, eu sou grato, e todos os nossos o são, ao cuidado que tivestes em trazer para aqui uma piscina, onde podemos nadar e viver — mas piscina não vale o mar; falta-nos a onda grossa e as corridas de peixes grandes e pequenos, em que nos comemos uns aos outros, com grande alma. Isto que nos destes, prova que tendes bom coração, mas nós não vivemos do bom coração dos homens. Vamos comendo, é verdade, mas comendo sem apetite, porque o melhor apetite…

Foi interrompido pelo galo, que bateu as asas, e, depois de cantar três vezes, como nos dias de Pedro, proferiu esta alocução:

— Pela minha parte, não é a chuva que me aborrece. O que me aborreceu desde o princípio do dilúvio, foi a vossa idéia de trazer sete casais de cada vivente, de modo que somos aqui sete galos e sete galinhas, proporção absolutamente contrária às mais simples regras da aritmética, ao menos as que eu conheço. Não brigo com os outros galos, nem eles comigo, porque estamos em tréguas, não por falta de casus belli. Há aqui seis galos de mais. Se os mandássemos procurar o corvo?

Não lhe dei ouvidos. Fui dali ver o elefante enroscando a tromba no surucucu, e o surucucu enroscando-se na tromba do elefante. O camelo esticava o pescoço, procurando algumas léguas de deserto, ou quando menos, uma rua do Cairo. Perto dele, o gato e o rato ensinavam histórias um ao outro. O gato dizia que a história do rato era apenas uma longa série de violências contra o gato, e o rato explicava que, se perseguia o gato, é porque o queijo o perseguia a ele. Talvez nenhum deles estivesse convencido. O sabiá suspirava. A um canto, a lagartixa, o lagarto e o crocodilo palestravam em família. Coisa digna da atenção do filósofo é que a lagartixa via no crocodilo uma formidável lagartixa, e o crocodilo achava a lagartixa um crocodilo mimoso; ambos estavam de acordo em considerar o lagarto um ambicioso sem gênio (versão lagartixa) e um presumido do sem graça (versão crocodilo).

— Quando lhe perguntaram pelos avós, observou o crocodilo, costuma responder que eles foram os mais belos crocodilos do mundo, o que pode provar com papiros antiquíssimos e autênticos…

— Tendo nascido, concluiu a lagartixa, tendo nascido na mais humilde fenda de parede, como eu… Crocodilo de bobagem!

— Notai que ele fala muito do loto e do nenúfar, refere casos do hipopótamo, para enganar os outros, confunde Cleópatra com o Kediva e as antigas dinastias com o governo inglês…

Tudo isso era dito sem que o lagarto fizesse caso. Ao contrário, parecia rir, e costeava a parede da arca, a ver se achava algum calor de sol. Era então sexta[1]feira, à tardinha. Pareceu-me ver por uma fresta uma linha azul. Chamei uma pomba e soltei-a pela janela da arca. Nisto chegou o burro, com uma águia pousada na cabeça, ente as orelhas. Vinha pedir-me, em nome das outras alimárias, que as soltasse. Falou-me teso e quieto, não tanto pela circunspeção da raça, como pelo medo, que me confessou, de ver fugir-lhe a águia, se mexesse muito a cabeça. E dizendo-lhe eu que acabava de soltar a pomba, agradeceu-me e foi andando. Pelas dez horas da noite, voltou a pomba com uma flor no bico. Era o primeiro sinal de que as águas iam descendo.

— As águas são ainda grandes, disse-me a pomba, mas parece que foram maiores. Esta flor não foi colhida de erva, mas atirada pela janela fora de uma arca, cheia de homens, porque há muitas arcas boiando. Esta de que falo, deitou fora uma porção de flores, colhi esta que não é das menos lindas.

Examinei a flor; era de retórica. Nenhum dos animais conhecia til planta. Expliquei-lhes que era uma flor de estufa, produto da arte humana, que ficava entre a flor de pano e a da campina. Há de haver alguma academia aí perto, concluí, academia ou parlamento.

Ontem, sobre a madrugada, tornei a abrir a janela e soltei outra vez a pomba, dizendo aos outros que, se ela não tornasse, era sinal de que as águas estavam inteiramente acabadas. Não voltando até o meio-dia, abri tudo, portas e janelas, e despejei toda aquela criação neste mundo. Desisto de descrever a alegria geral. As borboletas e as aranhas iam dançando a tarantela, a víbora adornava o pescoço do cão, a gazela e o urubu, de asa e braço dados, voavam e saltavam ao mesmo tempo… Viva o dilúvio! e viva o sol!

Machado de Assis

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro em 1 de junho de 1894.

Texto-fonte: Obra Completa de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, Vol. III, 1994.

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