A nossa Gaza de cada dia

IMAGEM: FREEPIK

FICÇÃO

João dormia. A esposa de conchinha em sonho pesado. No outro quarto do apartamento as duas filhas dormiam serenas.

Um zumbido estridente de sirene ecoou forte. Depois um estrondo. 

— Um míssil acertou algum alvo aqui perto! — ele exclamou atordoado, desperto do sono, em tempo de acordar a esposa —  A guerra começou — continuou resmungando  para o nada ainda em voz pastosa de sono.

Levantou-se da cama em um pulo brusco e foi direto para a janela.  Tudo estava tranquilo sob o céu carioca. A rua vazia, os demais prédios dormiam com suas luzes apagadas. Algumas janelas com luzes acesas. Como um míssil estourou por aqui se não estamos em guerra? — pensou.

O coração batendo acelerado. De onde teria vindo aquele som de sirene se o céu estava estrelado e não havia prenúncio de chuvas fortes? E o estrondo tão forte? Teria sido uma batida de carro em algum lugar próximo? Teria sido uma bomba? Não era tiro de escopeta, nem tiroteio de algumas facções do tráfico e das milicias uma com as outras. Mas a sirene, o estrondo… estrondo como um míssil acertando em algum alvo. Mas nunca ouvira na realidade um ruído de míssil.  Quem mandou ficar até tarde assistindo pela tv o desenrolar das ações bélicas do Irã, as provocações descabidas de Netanyahu ao Irã, sobretudo o consulado iraniano em Damasco? A ofensiva do Irã em Israel.   Se o Irã entrasse em guerra contra Israel… ou melhor se Israel atacasse belicamente o Irã, a III Guerra Mundial estaria em curso? A III Guerra Mundial estaria em curso… — A ansiedade de João dando voz ao caos não anunciado.  O mundo Árabe entraria em guerra contra Israel. A Otan entraria na defesa de Israel e na ofensiva ao mundo Árabe. Os Estados Unidos entrariam na guerra a favor de Israel. E o Brasil? O Brasil ficaria de que lado? O Brasil já está do lado certo da humanidade ao ficar contra as ações de Israel, ao defender as causas dos palestinos.  Mas… e agora? Se a gente ficar do lado do mundo árabe, os Estados Unidos pressionariam o Brasil para mudar de ideia. Se nosso país ficar do lado dos norte-americanos ficaremos fora da ética humanista. Qual a melhor opção em tempos de guerra? A III Guerra em andamento? Claro que especialistas diziam que não havia riscos eminentes, mas era de se preocupar. Boa parte da noite ele ficou pensando essas coisas.

Olhou para a cama. A mulher dormindo tranquila.  As filhas no outro quarto dormiam. Todas sobreviveram à covid, ele também. Todos sobrevivendo aos crimes do dia a dia  no Rio. Pelo menos até agora… mas e se houvesse uma guerra de proporções mundiais? Armas nucleares seriam usadas. Talvez o som da sirene e o estrondo fosse apenas um pesadelo do que pensara ontem antes de dormir.

Olhou de novo a janela. Os prédios em ordem. O leve frescor da madrugada carioca. O Rio lindo como sempre mesmo na madrugada. O Rio de Janeiro: uma Gaza permanente. Os cariocas cada vez mais confinados por uma outra Israel, por centenas de netanyahus: traficantes, milicianos, até políticos empurrando o povo para uma Faixa de Gaza simbólica e violenta.  Todos tirando a liberdade dos cidadãos. Quantas pessoas são mortas por dia no Rio na guerra constante?  Lembrou-se do noticiário de ontem: uma pessoa morreu e cinco feridas numa invasão em festa. Mestre de bateria morto em Seropédica.  DJs mortos em comunidade. Duas pessoas mortas durante  troca de tiros de facções criminosas na Vila Aliança…

O cérebro lhe conduziu ao Oriente Médio. Muitos israelenses apreensivos com medo de um ataque. Muitos deles são contra a guerra e devem estar agora no maior estresse em abrigos. Os brios de Netanyahu valem mais que vidas. Até quando ele permanecerá no poder daquele país? Até quando o mundo terá que assistir aos avanços imperialistas de Israel? Quando a paz chegará ao Oriente? O Estado da Palestina sempre distante de ser criado.

O coração ainda batendo acelerado. O que fazer? A mulher dormindo serena. Dirigiu ao quarto das filhas: dormiam serenamente. Dormiam e o Oriente Médio estava em ebulição. Quantas pessoas teriam morrido esta noite na Faixa de Gaza? E nesta noite, quantos morreram por causa da violência carioca?

 Olhou o relógio da parede:  02h 14min.

O mundo estava cada vez mais louco, ele mais louco ainda. Lembrou-se da sirene, pensou no estouro. Tudo deve ter sido invenção da cabeça dele. Desde a semana passada tinha sentido o coração disparar sempre que  via falar das guerras lá fora e a do crime aqui. Já era tempo de procurar um psicólogo… um psiquiatra, talvez. Passaria hoje na farmácia e compraria um calmante natural.

Dirigiu-se à sala, abriu o barzinho, pegou um uísque e virou a garrafa na boca. Goles generosos desciam goela abaixo. Era preciso relaxar.

Vald Ribeiro
(vald@revistapalavras.com.br)

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