Só quem está apaixonado e ama secretamente sabe o real sentido do soneto 005 de Camões. Não saberá decifrar este poema quem nunca amou porque cometerá a tolice de dizer que amor é isto mesmo: “ferida que dói e não se sente”, “contentamento descontente”, “dor que desatina sem doer”. Aliás, amor mesmo é o que Romeu sentiu por Julieta e ela por Romeu. Principalmente, amor é o que Orfeu tinha por Eurídice*.
Orfeu possuía o amor mais puro e fiel! Casou-se com Eurídice, em cerimônia repleta de glória. Infelizmente, um homem arbitrário apaixonou-se por ela. Certo dia, enquanto Eurídice passeava com amigas em um jardim, esse homem a perseguiu com intenções nefastas. Para fugir, ela correu, mas tropeçou em uma serpente venenosa que a picou, levando-a à morte. Orfeu, movido pelo amor, desceu ao mundo dos mortos, enfrentou seres sombrios e, com seu dom musical, comoveu até Plutão e Prosérpina — os chefões desse submundo — a ponto de convencê-los a dar vida novamente a Eurídice. Conseguiu a permissão para levá-la de volta ao mundo dos vivos com uma condição: ela o seguiria, e ele não deveria olhá-la até saírem do submundo. Mas, pouco antes de chegar ao mundo dos vivos, ansioso, Orfeu olhou para trás, e Eurídice desapareceu. Ela mal teve tempo de dizer Adeus! Mas uma vez Orfeu, motivado pelo puríssimo amor que nutria pela amada, desceu ao vale da morte. Desta vez, não obteve sucesso. Ele teve que voltar para o mundo dos vivos sem a mulher que tanto amava. Ao longo dos anos, inúmeras ninfas tentaram seduzi-lo. Tudo em vão: Orfeu não conseguia relacionar-se mais com nenhuma mulher. O coração dele era de Eurídice para sempre.
Um dia, as ninfas, enraivecidas com o desdém de Orfeu, mataram-no, esquartejaram-no e o enterraram. Assim, morto, o semideus apaixonado pôde finalmente encontrar-se com sua amada no mundo dos mortos para viverem esse grande amor. O amor de Orfeu era lindo! Eurídice também o amava de igual modo! Neste caso, o amor, mesmo diante de tantas adversidades, não foi um fogo ardente escondido, nem uma dor encoberta.
O verdadeiro amor também foi o que Florentino Ariza sentiu por Fermina Daza — protagonista do romance “O Amor nos Tempos do Cólera”, de Gabriel García Márquez. O afeto de Florentino é um exemplo perfeito de um amor tal qual Camões descreve em seu soneto. Por quantos anos Florentino viveu apaixonado por Fermina sem que o encontro amoroso se realizasse! Desde a a tenra juventude até a velhice! Para ele, o amor foi um fogo ardendo sem que ninguém o visse, foi uma ferida doendo… enfim, tudo o que Camões descreve em seu poema.
Como eu ia escrevendo: só quem viveu ou vive uma paixão secreta pode realmente interpretar a contento o poema mais famoso de Camões. Veja você os dois primeiros versos:
“Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;”
Veja: é coisa de quem não se declarou ainda. O fogo é a paixão secreta queimando o coração do apaixonado. Um incêndio descomunal que provavelmente ninguém consegue perceber ─ nem a pessoa a quem ele ama. Exceto se essa pessoa, estando próxima, pressinta tênues sinais da fumaça desse fogo: algo como tremor nas mãos, fala rápida, tiques nervosos, olhar fixo nos olhos da amada, ou o desviar-se rapidamente do olhar dela. Sinais da fumaça do “fogo que arde sem se ver” podem também até ser percebidos pela gentileza que o apaixonado dirige à amada: “Como vai você?”, “conte comigo”, emojis carinhosos etc. Mas o fogo estará lá bem escondido no peito do amante secreto queimando por dentro e o motivando a chegar à amada e dizer “eu te amo” ou face a face dizer: “Sou apaixonado por você”, mas a timidez — ou o terrível medo de receber um não, ou de perder a amizade da pessoa a quem ele ama — o leva a recolher-se e ser mais ainda consumido pelo fogo.
Quem está apaixonado contenta-se com pouco, pouquinho e descontenta-se muito, muitíssimo com gestos ─ inocentes ─ da pessoa amada. Um “oi” presencial já é um paraíso, um contentamento idílico gigantesco. Um simples “oi” ou “bom dia” respondido infinitas horas ou dias depois pelo aplicativo de mensagem do celular já faz o amantético contente. E se ela lhe envia um emoji de beijo? O amado entra em combustão amorosa! O fogo arderá com mais vigor e ele, mesmo com esse simples gesto, se sentirá a pessoa mais feliz do mundo!
Camões discorre que o amor é um “contentamento descontente”, uma felicidade que rapidamente pode se transformar em tristeza quando o amante nota a ausência de um emoji de beijo no “bom dia” ou, mesmo que raro, um emoji de beijo sem uma palavra carinhosa. Esse descontentamento, seja numa saudação casual ou numa breve conversa, pode evoluir para uma depressão profunda se a pessoa amada demorar dias ou até semanas para responder. Nem o “contentamento” nem o “descontentamento” serão provavelmente notados por quem sofre desse amor secreto. Desse descontentamento nasce uma dor terrível que desatina — mas não dói fisicamente. A dor “sem doer” recai sobre a pessoa objeto da paixão, que pode nem perceber que alguém está sofrendo intensamente por amor a ela.
Quem ama secretamente, quem está perdidamente apaixonado ─ eu diria achadamente apaixonado ─ será solitário por opção. Poderá aproximar uma outra mulher que está apaixonadíssima por ele, poderão surgir diversas mulheres para compartilhar salientes e ─ calientes ─ prazeres sensuais, mas o solitário apaixonado as renegará. Que é isso senão o “andar solitário entre a gente”?
O amor “é um cuidar que ganha em se perder”: é o exagero do apaixonado que renuncia à vida cotidiana, à rotina, aos compromissos, para se dedicar à pessoa amada. O apaixonado perde em elementos da rotina e da vida social pela dedicação a quem ele ama secretamente… mas essa perda é, de fato, um ganho. Um ganho necessário! Um ganho que conduz ao contentamento!
“É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.”
Quem ama secretamente será cativo da pessoa amada por convicção. E essa prisão poderá ser por toda vida. Pode ser que, infelizmente, ele nunca declare o amor a quem ama… e será cativo desse amor por toda a vida terrena e no Além. E nessa paixão secreta, se a pessoa amada descobrir e não o amar, essa será vencedora e o pobre apaixonado o perdedor. Perdedor que será sempre cativo da vencedora, e, mesmo que ela o mate de desgosto, o artífice do amor secreto lhe será sempre leal.
Bem que Camões poderia ter escrito assim “O amor secreto é fogo que arde sem se ver”; mas o delicioso poema deixaria de ser esse belo decassílabo para ser um alexandrino irregular. Que graça teria?
Vald Ribeiro
(vald@revistapalavras.com.br)
*Na mitologia grega, Orfeu, filho do deus Apolo e da musa Calíope, era um músico talentoso cuja lira e voz encantavam a todos. Ele se apaixonou por Eurídice, uma ninfa de beleza e gentileza incomparáveis. Após um casamento feliz, mas efêmero, a história de amor deles enfrentou um trágico destino, tornando-se um dos mitos mais emocionantes da antiguidade.