( CRÔNICA)
“Academia Brasileira de Letras elege pela primeira vez um poeta da Literatura de Cordel”, foi a manchete que eu lia em um jornal impresso dependurado numa banca de revista na Zona Sul.
— Vivaaaaa! A ABL agora tem um poeta da Literatura de Cordel! — gritei aos quatro ventos. E todas as pessoas que passavam por ali me olhavam com espanto.
E eu gritei mais forte ainda, numa felicidade inenarrável:
— Uuuum cooooordeeeeeliiiiista naaaa Academiiiiaaaaa Braaasileiraaaaa de Letraaaaaaas!
E nesse grito forte, despertei. Aos poucos, fui recobrando a consciência do sono e do belo sonho. Peguei o celular que estava em uma mesinha próximo à minha cama e fui verificar se tinha alguma notícia sobre a próxima eleição na Academia Brasileira de Letras. Achei. Pela manchete há 15 pessoas disputando a vaga deixada por Antônio Cícero.
São 15 artistas da palavra tentando a imortalidade na ABL! Muitos dos candidatos são ilustres desconhecidos para mim. Ilustres desconhecidos também da grande imprensa? Não estou lembrado de ter visto alguma notícia sobre a maioria desses aspirantes à imortalidade. Reconheci dois candidatos que frequentemente aparecem na imprensa. Um deles é o magnifico escritor, pesquisador, jornalista, crítico literário Tom Farias. Dentre as inúmeras obras dele estão os diversos livros sobre o poeta abolicionista Cruz e Sousa”, o livro Carolina: uma biografia, o romance Os crimes do Rio Vermelho — são alguns dos destacados nas notícias. Aliás, ele é presença dinâmica na escrita, por ser também jornalista.
O outro candidato que já vi expresso na imprensa é Antônio Porfirio de Matos Neto, que é escritor, filósofo, presidente do Museu do Cangaço, no Povoado Alagadiço em Sergipe, ativista da cultura e das letras. Percebi que ele é um estudioso do cangaço. Não é um cordelista, mas me parece ser um arretado amante da cultura nordestina, e, certamente, um apaixonado pela Literatura de Cordel. É nordestino, mas não é um cordelista!
Quanto aos outros, 13 candidatos talvez sejam escritores de sucesso conhecidos apenas em suas respectivas regiões, longe da imprensa nacional. Todos com suas contribuições culturais para a sociedade brasileira.
Lembrei-me do tempo em que o cineasta Cacá Diegues, o editor e colecionador carioca Pedro Aranha Corrêa do Lago e a nobre escritora Conceição Evaristo foram candidates a uma cadeira na ABL. Ela obteve apenas um voto. Simplesmente um votinho para a mais badalada escritora negra do país que grandiosamente enriquece a humanidade com sua literatura bela, lírica, racional e engajada. Quantas pessoas se sentem representadas nas obras de Conceição Evaristo! Bem que ela deveria estar lá na ABL, altiva, cheia de garbo, de luz, de intelectualidade, de negritude, de brasilidade e de forte engajamento social. Mas foi terrivelmente preterida. A derrota dela foi também a derrota dos amantes da boa literatura, foi a nossa derrota também.
Lima Barreto também foi preterido da ABL por duas vezes. Na terceira tentativa de ser imortal ele desistiu. Lima Barreto preto, pobre e sem dotes para vestir ternos de gala. Engajado socialmente, esquerdista libertário. Ele que trouxe o preto, o pobre para a Literatura ficou fora da imortalidade acadêmica. Mas ele nem precisou da Academia para a imortalidade: por si só, ele é imortal.
Pausei meu pensamento e voltei para a reportagem. Vi que dentre os candidatos há um paraibano, o escritor romancista Jose Efigênio Eloi Moura. Segundo o site ele faz uma Literatura bem-humorada e que valoriza a cultura e os falares nordestino. Moura é nordestino, deve amar a Literatura de cordel, mas não é um cordelista, nem tampouco um repentista — dois gêneros da poesia que deveriam estar representado na ABL.
Imagino agora Bule-Bule eleito para a ABL. Ele de fardão e chapéu de couro de bode fazendo o discurso de posse. Em vez de um discurso quilométrico em prosa e sem melodias, ele faria um repente arretado de bonito, ou faria o discurso em formato de cordel. Seria lindo a quebra de protocolo: todas as pessoas atentas e sem cochilar assistiriam prazerosamente ao grandioso discurso poético. E em outros discursos certamente ele usaria de algum gênero do repente para compor seu discurso. Eu gostaria muito de ver Bule-Bule na Casa de Machado de Assis! Ele que é repentista, cordelista, forrozeiro, prosador, sambador do bom samba de roda. Não seria só o cordel e o repente representado na ABL, seria o samba, a cantoria, a tradição nordestina, a cultura afrobrasileira em todas as suas vertentes representadas na iluminada pessoa de Bule-Bule.
Meu grande desejo é ver outros cordelistas eleitos à imortalidade da Academia. Também gostaria de ver repentistas. Fico imaginando a revolução discursiva na Casa de Machado de Assis se Oliveira das Panelas fosse eleito. Ivanildo Vilanova, Odilon Nunes de Sá, Edmilson Ferreira, Geraldo Amâncio e tantos outros magníficos poetas repentistas prontos para ocuparem a cadeira da imortalidade.
Imagino agora ao menos dois acadêmicos repentistas num diálogo ou nas tradicionais conversas literárias da Academia usando um ou vários dos gêneros do repente: martelo agalopado, martelo alagoano, galope a beira mar, gemedeira, sextilha, setilha… Gostoso também seria em um desses encontros literários dois acadêmicos fazendo um quadrão perguntado.
Repente é nossa mais fina poesia: feita de improviso, mas rigorosamente metrificada, seja na rigorosa contagem das sílabas e dos ritmos que são processados na hora, ao vivo, sem pausa para pensar. Quem faz repente é sempre um poeta acima da genialidade. Inventar na hora um poema cantado com ritmo, melodia, métrica, metáforas e toda diversidade de recursos poéticos só mesmo alguém além da altíssima genialidade: um hiperpoeta. Repente é poesia pura, duplamente pura. E ainda haveremos de presenciar repentistas, também cordelistas eleitos na ABL.
Não há literatura poética mais democrática que a Literatura de Cordel. Pobres e ricos, analfabetos e letrados, sertanejos e urbanos, vaqueiros e fazendeiros, crianças, jovens e idosos consomem dessa rica fonte literária. Que outra Literatura une tão bem classes sociais e gerações distintas? Os nordestinos raízes, os frequentadores da Feira de São Cristovão no Rio de Janeiro que o digam, os membros e apoiadores da Academia Brasileira de Cordel certamente responderão sem pestanejar: a Literatura de Cordel.
Que surjam poetas repentistas, poetas de Cordel candidatos à ABL, que sejam eleitos para honra e glória da nossa cultura.
Vald Ribeiro