Por Vald Ribeiro
A marchinha de carnaval Ra, ré, ri, ró, rua, composta e cantada por Carolina Maria de Jesus, apresenta eu lírico feminino que transmite uma mensagem de empoderamento, conforme fica evidente na letra:
“Ra, ré, ri, ró, rua
Você vai embora
Que esta casa não é tua
Você chega de madrugada
Fazendo arruaça e xaveco
Além de não comprar nada
Ainda quebra o meu cacareco”
Na sequência da música, a esposa demonstra arrependida de ter se casado e determina:
“Qualquer dia eu vou te abandonar”
Nesta bela marchinha carnavalesca, marcada pelo bom-humor — característica essencial do gênero —, Carolina Maria de Jesus transmite uma mensagem de empoderamento feminino. A compositora retrata uma mulher que se recusa a se submeter a um companheiro farrista que chega de madrugada, agredindo a esposa e destruindo objetos da casa. A compositora mostra também outro defeito do amado: “não comprar nada”, o que evidencia mais ainda a irresponsabilidade e descaso do marido com o lar.
Essa música é a primeira canção que abre o único álbum musical de Carolina, intitulado de Quarto de despejo: Carolina Maria de Jesus cantando suas composições. Embalado pelo sucesso da publicação do livro Quarto de despejo, diário de uma favelada, o disco foi lançado em 1961 pela gravadora RCA Victor. O disco, que era a realização de um sonho da autora, foi a consubstanciação de outra habilidade artística da então best-seller brasileira que festejava ainda o estrondoso sucesso do livro.
Nenhum outro escritor da época vendeu tantos livros quanto Carolina. Em apenas uma semana após o lançamento, o livro de estreia já havia vendido 10 mil exemplares, um feito inédito para a época. Em três meses, a vendagem atingiu a marca de 100 mil cópias, superando todos os recordes de vendas literárias, inclusive os de Jorge Amado, o autor mais popular daquela década. O romance, aclamado pelo público, rapidamente conquistou o cenário internacional, sendo traduzido para 13 idiomas. Até hoje, a autora de Quarto de Despejo é uma das celebridades literária brasileira mais traduzida, com suas obras publicadas em mais de 40 países.
Com isso, dado ao alcance literário, Carolina, até hoje é conhecida do grande público apenas como escritora, mas ela foi também compositora, cantora, poeta, contista, escreveu peças teatrais, queria ser atriz e cantora. Como atriz e dramaturga, ela chegou a flertar com o teatro, mas não consumou essa arte.
Carolina Maria de Jesus autografando o livro de estreia ( Agosto de 1960. Arquivo Nacional. Fundo Correio da Manhã)
Ser escritora de prosa não foi o primeiro desejo de sucesso da autora de Quarto de Despejo. Recém-chegada a São Paulo, em 1937, época em que a autora peregrinava em diversas formas de emprego, inclusive como empregada doméstica, ela já sonhava em viver da literatura, sobretudo da poesia. Tão grande era esse desejo que ela procurava diversas redações de jornais, tentando convencer os editores a publicarem seus poemas. Nessa investida na imprensa escrita, a então poeta conseguiu que alguns jornais publicassem seus poemas. O primeiro foi a Folha da Manhã, em 1940, que publicou a matéria intitulada Carolina Maria, poetiza preta e apresentou o poema Colono e o fazendeiro. Depois, a autora apareceu em mais dois jornais: em 1942, o jornal carioca A noite publicou dois de seus poemas; em 1950, em São Paulo, poemas dela foram publicados no jornal O Defensor — do qual ela tornou-se colaboradora.
A presença marcante de Carolina na literatura acontece graças ao apoio do jornalista Audálio Dantas, que, em 1958, ao visitar a favela do Canindé — onde ela morava — para fazer uma reportagem, a conheceu e, a partir daí, após diversos encontros e negociações, atuando como incentivador e agente literário, viabilizou a publicação de Quarto de Despejo: diário de uma favelada em 1960.
Um ano depois, Carolina lança o disco que é composto de 12 músicas de diversos gêneros musicais e temas: samba, marchinha e forró. A diversidade de gênero musical demonstra o quanto a escritora era versátil também na música, inclusive no canto em que ela consegue, e um timbre vibrante e natural passar emoção em cada letra, bem arquitetada para passar uma mensagem que demonstra o lugar de fala de uma mulher que não se curvou à realidade social nem as imposições machistas e preconceituosas da época.
Em Ra, ré, ri, ró, rua, a autora apresenta uma visão dissonante da realidade brasileira da época, ao retratar uma mulher que rompe com o comodismo e a aceitação da violência masculina. A obra é um emblema de empoderamento feminino, em consonância com a intelectualidade e a personalidade forte e independente de Carolina. Embora não tenha se filiado a movimentos feministas, ela sempre demonstrou uma postura feminista, marcada por uma personalidade forte e pela recusa da masculinidade tóxica. Mãe solo de três filhos, ela nunca almejou o casamento e, em suas obras, sempre exaltou a independência feminina, recusando assédios e cantadas.
Em contraposição ao marido tóxico de Ra, re, ri, ró rua está a música Acende o Fogo. Nela é apresentada Mané, que é um marido trabalhador:
“Mané sai de madrugada
Sai antes do sol nascer
Ele não deixa faltar
Comida pra eu comer”
Além de trabalhador, Mané é romântico e amoroso com a esposa:
“Me chama de minha amada
Dona do seu coração
Me chama de minha amada
Dona do seu coração
O mané gosta de mim
Me chama de meu amor
Quando ele vem da lavoura
Me traz um ramo de flor”.
Carolina de Jesus antes de embarcar em avião da Air France ( Fotografia do Fundo Correio da Manhã, sob a guarda do Arquivo Nacional)
Em contrapartida a esse amor romântico, acentuando o papel da mulher independente, a última música do álbum apresenta, em tom bem-humorado, uma mulher casada que, em vez de viver apenas para o lar e para o marido, leva uma vida boêmia. Essa figura feminina rompe com o estereótipo da mulher romântica que convive apenas com o marido:
“Maria diz que é casada
Honesta, mulher de bem
Maria vive com todos
Mas não gosta de ninguém”
Como em toda obra literária de Carolina, neste álbum há músicas que denunciam as mazelas da desigualdade social e o sofrimento dos mais pobres, com críticas sociais expressas em letras marcadas por melodia e bom humor. Há também músicas que são verdadeiras crônicas da periferia, cujas letras e melodias antecipam o estilo de compositores como Moreira da Silva e Bezerra da Silva, como no samba intitulado de Malandro. Nessa canção, a polícia invade um barraco para prender um malandro, mas, enquanto ele avalia alguns produtos roubados, mostra-se mais esperto que os policiais e consegue escapar.
Para ouvir as preciosas músicas da autora de Quarto de Despejo, há diversos canais no YouTube que disponibilizam suas composições. O Instituto Moreira Salles (IMS) dedica um site para Carolina Maria de Jesus, oferecendo as músicas originais, além de documentos, entrevistas e outros materiais que ajudam a compreender a vida e a obra dessa importante intelectual brasileira.
O disco é mais um dos frutos dessa intelectual preta inquieta e multiartista, que infelizmente ainda é conhecida por considerável parcela da população apenas como a favelada que escreveu o livro Quarto de despejo, diário de uma favelada. Ainda há muito o que descobrir sobre Carolina Maria de Jesus, inclusive mostrá-la não apenas como escritora, mas como multiartista da palavra e como liderança intelectual essencial da sociedade brasileira.