Havia um tempo em que as coisas mais duras se dissolviam no olhar curioso da criança. Era como se o mundo fosse um brinquedo. Minha mãe, meu pai, meus irmãos e nossos vizinhos unidos pela necessidade e o lixão do kadija como esperança. Era preciso escolher as melhores cargas, aquelas vindas dos bairros chiques. Eu corria atrás de meus irmãos e a gente se divertia de verdade, sempre sob o olhar e reclamações dos mais velhos, temendo algum acidente. No lixo-parque havia mais gente, urubus e cachorros e a disputa se travava. Meu pai, mestre da boa vizinhança, sempre dava um jeito de acalmar os ânimos. Eu ficava com pena dos bichinhos que deixavam o lugar a toque de gritos e de pedras. A hierarquia devia ser preservada.
Lixo bom, com direito a doces de banana, vencidos. Mas quem vencia mesmo éramos nós por adiar a fome para o dia seguinte. Em agradecimento a Deus preparávamos a nossa ceia com os restos do lado de lá da cidade. Na escola, as pessoas se afastavam de nós e devia ser culpa do cheiro, o nosso, mas quem entre nós ligava?
Josué Brito Santana